Entre coberturas e “sensacionalismos”: o corpo violado

setembro 02, 2020

A abordagem da imprensa em volta dos casos de violência contra a mulher se mostra ineficaz, aponta estudo

#PraCegoVer - imagem traz duas câmeras fotográficas perto uma da outra.
*alerta de gatilho

Imersos na vergonha e no medo é que encontramos uma história quase não contada e um sentimento amordaçado. Nos últimos segundos, Antonia Barra, uma jovem chilena, expôs a violência que sofreu por Martín Pradenas em setembro de 2019, acusado de estuprar também outras jovens no país.

Após a festa da noite anterior, foi que Pradenas cometeu o crime de estupro. Quando se deu conta do ato, após momentos antes estar fora de si, Antonia encaminhou mensagens a sua amiga relatando o ocorrido e pedindo que viesse buscá-la.

Depois de diversas declarações do pai da vítima apoiando a filha, defesas do acusado e protestos em nome da moça, o caso continua em pauta no Chile. A história de Barra traz sem dúvidas um peso simbólico a todas as mulheres, principalmente àquelas que vivenciaram situações semelhantes.


Imprensa e Estupro

Os relatos de estupro, quando partem das vítimas, são rotineiramente colocados em dúvida - salvo algumas exceções. O questionamento parte da sociedade de modo geral, da justiça e em alguns momentos da própria família. A estrutura que sustenta toda essa obra machista e patriarcal foi construída no início da civilização ocidental e continua sendo reforçada por meio de vários elementos, como a imprensa sensacionalista.

No caso Eloá, mais especificamente um crime de feminicídio (veja aqui a definição), a mídia imprimiu ineficácia em cobrir a violência contra a mulher. Câmeras focadas no rosto da menor Eloá gravavam todo o cenário. A menina encarcerada pelo ex-namorado teve o corpo e imagem violados duas vezes, pelo criminoso e pelos grandes jornais. Após horas de negociação com a polícia, a adolescente foi morta e, toda a história foi narrada ao vivo pela imprensa, como num filme.

Segundo a decisão, advogados já inscritos envolvidos em casos de violência contra...
GETTY IMAGES
#PraCegoVer - Mulheres no fundo da imagem seguram cartazes com frases e a frente, com maior foco, uma mulher aparece com os olhos fechados e o rosto marcado de tinta vermelha em formato de uma mão sobre sua boca. 

A história da menor executada é apenas um dos casos narrados pelos jornais. Recorrentemente, assim como nessa história, pouco é falado sobre a violência sofrida pela vítima. Existe, sobretudo, um tratamento complexo em cima da figura do agressor, ora exibido como um “maníaco x” ora como um homem de bem, que apenas está transtornado com a vida, bêbado e por isso chegou nesse ponto.

A grande problemática se encontra no poder que tem a mídia na sociedade e o que ela já fez - propositalmente, ou não - nos momentos em que a pauta era violência estrutural. Segundo um estudo de 2019 da jornalista Luciana Araújo, a cobertura dos jornais é imprópria quando o assunto é feminicídio. Para ela, é necessário que a imprensa atue socialmente para que a população conheça as alternativas, as formas de denúncia para romper com tais crimes.


Outro agravante está no modo em que os jornais individualizam os casos. Cria-se grande alarde em histórias que vem à tona, ignorando o alicerce delas, que é fundamentalmente fruto da cultura machista. Toda essa cobertura afasta a sociedade das raízes da questão, da identificação do agressor, estuprador, como um homem comum; do problema enquanto algo mais frequente do que se imagina e dos fatores que desenharam o cenário até aqui. Em caso de estupro, no levantamento de 2018 o Mapa da Violência revelou que a relação do agressor com a vítima era: 48,8% companheiros ou parentes e 15,3% conhecidos.


Antonia e Eloá: narrativas diferentes e dores semelhantes. Após o relato, a primeira história foi questionada- inclusive por jornalistas; já a segunda, vista ao vivo no televisor de muitas casas, não despertou o suficiente a sociedade. Entre coberturas, “sensacionalismos”, reportagens e matérias é que estão os corpos violados.

MercadizarIndica: documentário 'Quem matou Eloá?' - Mercadizar
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#PraCegoVer - imagem traz a  pergunta: "Quem matou Eloá?" em português e inglês.

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